sábado, 31 de outubro de 2020

31 de Outubro: Lutero e a publicidade de problemas internos da igreja.

Lições, legados e fronteiras éticas para pentecostais inseridos em ambientes religiosos cada vez mais radicalizados em feudos episcopais (e hereditários).

Em tempos de pós-verdade, nos deparamos com uma crescente alienação política (no sentido de posicionamento perante a congregação) entre os fieis, pois assimilam várias situações como uma só e sempre favorável à narrativa de suas lideranças espirituais. Um bom exemplo disso é confusão entre obediência e “subserviência”, “cumplicidade”, “apoio branco” ou, ainda, “chapa-branquismo”.

Outro exemplo é confusão de contestação a desvios de lideranças com “revolta contra Deus”. Cada um desses termos tem suas significações absolutas e próprias, mas, como já disse, vivemos na era da pós-verdade. Óbvio que essas confusões conceituais não são formuladas pelos leigos, mas sim pelas lideranças eclesiásticas que os doutrinam e formam sua visão de mundo. Ou depende do tipo de liderança.

Líderes que não gostam de ser questionados, usam da coação psicológica e de uma “terrologia” que desestimulam posicionamentos públicos de fiéis descontentes. Uma vez que as estruturas religiosas estão cada vez mais radicalizadas no bloqueio de questionamentos/críticas internas e na concentração de poder na mão de um só líder, sua família e seu grupo político de apoio, não deixam espaço para fiéis se expressarem, restando a esses últimos recorrerem à arena pública.

E isso nos remete a um ato protagonizado por um sacerdote agostiniano, em 31 de outubro de 1517. Martinho Lutero fixou suas 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, resultando na Reforma Protestante. E é interessante realçar 3 fatos grandiosos nesse gesto: foi um ato público, tinha críticas teológicas e eclesiásticas e ele fez isso sozinho – todos os ingredientes identitários de um crente “rebelde” se o mesmo fizer a mesmíssima coisa em relação às suas lideranças. Se não é assim em todos os casos, pelo menos na maioria é.

Na era da internet lideranças eclesiásticas não gostam de ver seus fiéis, como um todo, colocando em redes sociais seu descontentamento. E uma grande parte desses fiéis fazem isso de forma imprudente, o que acaba legitimando a negativação total – inclusive dos que fazem suas manifestações públicas de forma equilibrada e dentro da ética cristã.


O irmão tem que orar e não ir pro Facebook postar seu descontentamento”, dizem muitos papas pentecostais – não é exagero, pois há um número crescente dos que até mudam estatutos pra serem presidentes vitalícios. Lutero não ficou somente orando e jejuando até o ano de sua morte (1546) para que a igreja romana, que vinha se corrompendo e corrompendo há séculos, se concertasse. A Santa Sé não queria isso, inclusive nos três séculos anteriores ela esmagou tentativas de reformas internas.

Grupos como valdenses, albigenses, anabatistas, etc., foram trucidados. John Wycliffe foi perseguido o resto da vida escapando por pouco das garras assassinas dos inquisidores. Seus discípulos, conhecidos como lolardos, foram exterminados, incluindo o John Huss que foi preso de forma covarde e martirizado. E já no tempo em que Lutero era jovem, e decidindo seu futuro profissional, Jeronimo Savonarola, padre em Florença, estava promovendo uma reforma moral local e foi morto pela Santa Sé (em 1498).

Assim, a Reforma nunca vingou. E quem sabe um pouco de história desses movimentos e dessas personalidades, sabe que tinham uma vida piedosa e de oração. Lutero sabia com que forças estava lidando. Quando falo em fronteiras/limites da ética cristã nesse caso, refiro-me à capacidade do indivíduo se portar com coragem e altivez pautado pelas Escrituras diante de chefes religiosos que também usam as Escrituras, mas parte dela.

Um fator que desse ser notado é que Lutero não estava ali, no dia 31 de outubro de 1517, para simplesmente contender – o que já ruim de todas as formas –, mas para declarar o erro – o que já causa grandes incômodos. Para os lobotomizados essas duas coisas são a mesma atitude. Parecem, mas não são. Lutero foi propositivo: apontou os desvios que ele enxergava e apontava soluções que estavam nas Escrituras.

Respeitou a autoridade do papa e se propôs ao debate sobre cada uma de suas teses. Propôs-se a ir ao debate, recebeu a intimação a ir e foi. Na Dieta de Worms, em 16 de abril de 1521, Martinho Lutero, na presença do poderoso imperador Carlos V, cercado de inimigos e pressionado por Johann Eck a renunciar seus escritos, declarou:


A menos que possa ser refutado e convencido pelo testemunho da Escritura e por claros argumentos (visto que não creio no papa, nem nos concílios; é evidente que todos eles frequentemente erram e se contradizem); estou conquistado pela Santa Escritura citada por mim, minha consciência está cativa à Palavra de Deus: não posso e não me retratarei, pois é inseguro e perigoso fazer algo contra a consciência. Esta é a minha posição. Não posso agir de outra maneira. Que Deus me ajude. Amém!”.



Lutero não foi pra nenhuma rede social (Facebook, Instagram, Twitter, etc) para postar seus descontentamentos teológicos e eclesiásticos – uma vez que elas não existiam – mas ele usou a mídia mais revolucionária de sua geração pra espalhar suas teses e sua posterior produção teológica: a imprensa, inventada em 1450 por Johannes Gutemberg. Outros reformadores que surgiram em outras regiões da Europa também utilizaram essa mídia.

E a Igreja Católica, que perdera o monopólio da informação e, consequentemente, da narrativa, sentiu o peso da mídia. Tempos depois, na Contrarreforma, a Cúria absorveu muitas teses de Lutero.

Irmão, falar essas coisas dá escândalo”. Errado, quem comete escândalo não é quem denuncia, mas quem comete. Não foi Samuel que cometeu o escândalo ao falar a saul de seus pecados e consequência – tudo isso em público; quem cometeu escândalo foi Saul. Natan não cometeu o escândalo ao confrontar Davi em sua corte; quem cometeu o escândalo foi Davi ao adulterar com Bate-Seba e propiciar o assassinato de Urias. É interessante que Davi se quebrantou e se reconciliou, pois deu lugar ao arrependimento, e Natan fez muito bem sua parte em não fazer espetáculo sobre erros graves, apesar de aponta-los. Tenhamos discernimento nessas coisas.

Há exemplos bíblicos, como Jeremias (principalmente esse) e Ezequiel, que “bateram de frente” com suas lideranças espirituais, que estavam de alguma forma mergulhados em uma ou outra forma de corrupção. Não ficaram somente orando. Jeremias, nesse oficio foi o que mais sofreu e talvez, por isso, é chamado como o profeta das lágrimas. Mas como a data é sobre a Reforma Protestante, optei fazer um percurso histórico com nomes que circundam essa data.

Qualquer fiel, sem espaço interno para falar, que demonstre seu descontentamento em sua rede social, mesmo pautado na ética, sempre será mal visto por suas lideranças/Ministério. Além de enfrentarem essa força contrária “de cima”, da classe dirigente, esse grupo esclarecido ainda tem que desassociar sua imagem da de crentes neófitos, que não fazem críticas propositivas, apelam pro linchamento moral e que só querem polemizar por polemizar.

O primeiros são uma versão muito melhorada de Lutero (que não foi lá um reformador radical mas, sim, um reformador magistral e intolerante), enquanto os últimos precisam de prudência como a de serpentes e simplicidade como a de pombas (Mt 10:16).

Por José Andrews, graduado em História pela UFAM-Manaus.